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Biojoias Wapichana: a indígena que aprendeu a empreender para multiplicar e hoje transforma sua comunidade com projetos coletivos

Isabela Wapichana encontrou no empreendedorismo indígena feminino uma forma de curar, empreender e transformar o território com biojoias sustentáveis.

Por Cyneida Correia e Luan Guilherme Correia

A história de Isabela Wapichana é um retrato do empreendedorismo indígena feminino que brota da floresta e floresce em biojoias de resistência. A primeira joia nasceu da dor. Veio em forma de coquinho, empurrado pelas mãos da mãe, com a delicadeza de quem oferece esperança.

Na comunidade indígena Tabalascada, no município do Cantá em Roraima, Eliane Isabela Tomaz, de 26 anos, conhecida como Isabela Wapichana, começava a transformar a própria angústia em beleza.

Era 2021, ano da pandemia. Foi também o início de um processo de cura que hoje dá nome a um projeto, sustento a uma comunidade e identidade a uma luta: Projeto Pimidy. o beija flor.

“Eu estava com depressão e ansiedade na pandemia. Minha mãe me entregou um baldinho de coquinhos e disse: ‘transforme essas sementes em artesanato que vai passar’.”

Passou? Não completamente. Mas a dor virou semente — e a semente, anel. Depois colar. Depois oficina. Depois uma viagem histórica a Brasília, onde Isabela representou Roraima na I Feira Nacional de Artesanato Indígena. E tudo isso com os pés ainda fincados no território, onde a floresta não é recurso: é parente.

Empreender sem sair do território: o que é bioeconomia indígena na prática

Foi no auge da pandemia que Isabela se viu diante de um abismo. O trabalho como comunicadora popular indígena, que antes lhe conectava ao território e às lutas do povo Wapichana, já não bastava.

Foi quando ela decidiu recomeçar pelas mãos. Criou um ritual simples: selecionar sementes, polir coquinhos, traçar grafismos aprendidos nas oficinas do movimento indígena, montar brincos, anéis e colares. Em silêncio, recriava também a si mesma.

“Era para ser só uma terapia. Mas aí as pessoas começaram a perguntar, elogiar, comprar. A arte virou renda. E eu percebi que podia ser mais do que uma sobrevivente da pandemia: podia ser uma empreendedora indígena. Queria levar o que meu povo tinha dentro do território que são os nossos saberes, artesanatos, adereços indígenas que a gente trabalha, que os nossos avós ensinaram, nossos ancestrais deixaram de herança para gente”

Isabela aprendeu cedo que não é preciso sair da comunidade para criar algo valioso. Ao contrário: era ali, no chão da Terra Indígena Tabalascada, que estavam as sementes do seu negócio. Literalmente.

Isabela Wapichana usando as biojóias que ajuda a produzir

As biojoias que hoje circulam em feiras e encontros pelo Brasil nascem da coleta de sementes, fibras, cipós e frutos do território. São feitas com buriti, coquinho, penas naturais e muita conversa entre gerações.

“A gente não tira só para vender. A gente cuida para continuar tendo. O território é o que temos de mais sagrado. Se ele adoecer, a gente adoece junto. Precisamos preservar”, diz.

O discurso de Isabela não é ambientalista de ocasião. É sobrevivência. É bioeconomia com raiz e rosto — que não é desconectada da luta pela preservação dos territórios indígenas e empreendedorismo indígena feminino.

O nascimento do Projeto Pimidy e a valorização do saber ancestral

Na comunidade Tabalascada as artesãs trabalham com sementes de forma coletiva (Foto: Arquivo Pessoal)

Foi dessa transformação íntima que nasceu o Projeto Pimidy, palavra que significa beija-flor na língua Wapichana. O nome escolhido não à toa: a ave que carrega beleza, leveza e resistência se tornou símbolo de um projeto que hoje ensina outras mulheres e crianças da comunidade a produzirem artesanato com identidade e propósito.

As peças não são apenas ornamentos. São narrativas esculpidas em fibras de buriti, sementes nativas e cores que carregam as histórias do povo wapichana. São também instrumentos políticos do empreendedorismo indígena feminino.

“Sempre tive um sonho e a sede de levar a arte para outros jovens, para as mulheres, para as crianças e também para os homens. Porque precisamos refletir sobre os nossos saberes ancestrais, sobre a valorização e o resgate também dos nossos artesanatos, das nossas biojoias, dos nossos trajes, dos nossos cantos. A gente se reencontra nos nossos grafismos. É como se a memória dos nossos avós estivesse viva em cada colar que fazemos.”

A oficina virou espaço de acolhimento e formação. O Pimidy se multiplicou: deu origem ao projeto Japiim, à atuação como instrutora voluntária em outras comunidades e a uma nova consciência de pertencimento coletivo, pois todo o recurso é voltado para reinvestir na agricultura familiar e na sobrevivência da comunidade.

“Também ajudo as mulheres indígenas ensinando as técnicas de como produzir um bom anel, um bom colar e um bom traje. E também o canto indígena, que somos do povo Wapichana.  Então esse é o empreendedorismo que a gente está fortalecendo lá dentro da comunidade, saindo de lá e voltando o recurso para nosso povo”

As sementes e cocos são colhidos do próprio território e todo o recurso da venda volta para a comunidade (Foto: Arquivo Pessoal)

Como o Sebrae ajudou a transformar tradição em negócio

Foi pela internet, entre um post e outro, que Isabela descobriu o Sebrae. Não sabia o que era capital de giro, não separava o que era dinheiro do negócio e o que era dinheiro da casa. “Achei que empreender era coisa de cidade, de loja. Mas aí percebi que a gente já empreende há muito tempo. Só faltava dar nome.”

Fez cursos do Sebrae voltados para indígenas, aprendeu a separar as finanças da casa e do negócio, e descobriu que empreender também é resistência. E entendeu que podia crescer sem deixar de ser quem é. “A gente pode usar a tecnologia, mas continuar cantando nos nossos idiomas. Pode vender no Instagram, mas usar grafismo ancestral. Pode participar da economia sem virar produto.”

Quando Isabela decidiu assumir esse nome — empreendedora — foi como vestir um traje novo, costurado com fios antigos. “Não é só levar um produto. É levar a história que bordou esse produto. É levar meu território nos olhos de quem compra um colar meu.”

A caminhada foi abrindo caminhos. Pelo Movimento de Mulheres de Roraima, Isabela foi indicada para coordenar um projeto de empreendedorismo indígena feminino que oferecia oficinas para mulheres em situação de vulnerabilidade e violência doméstica.

Mas a oficina era mais do que produção: era espaço de reconstrução. A cada peça feita, uma mulher se levantava um pouco mais inteira. E no meio dos fios e sementes, um outro fio aparecia: o da preocupação com o planeta.

Antes que se falasse muito disso, elas já falavam. “Mudança climática” era uma expressão nova para um problema antigo. Secas mais longas, rios doentes, florestas sufocadas — tudo isso já estava nos relatos das anciãs. E foi com essa escuta que o projeto ganhou também apoio do Instituto Paiakan e do Departamento de Mulheres Indígenas do Brasil. A arte virou protesto. A biojoia virou discurso.

Do jenipapo ao CNPJ: como o Sebrae impulsiona negócios onde o Estado não chega

Além de Isabela, são mais de 720 mil mulheres empreendedoras espalhadas pelos estados da região Norte, segundo o Sebrae. No Pará, são 376 mil, mas Roraima também pulsa com histórias como a de Isabela, onde cada colar trançado é também um manifesto. Aliás, o Norte brasileiro tem uma taxa de empreendedorismo feminino inicial que ultrapassa a média nacional: 20,8% contra 17,5%.

O que é colhido, é vendido e o recurso ajuda a comunidade a plantar e reflorestar (Infográfico feito com auxílio da IA)

Mas há um dado que não cabe em planilhas e talvez por isso passe despercebido nos gabinetes: a diversidade do empreendedorismo amazônico. Na floresta, quem empreende tem a pele preta, parda ou o rosto pintado com jenipapo. São mais de 70% das mulheres empreendedoras da região Norte que pertencem a grupos racializados — enquanto no restante do Brasil, esse índice mal passa dos 35%. Esse dado muda tudo. Porque empreender, para essas mulheres, não é só abrir um negócio. É abrir caminho.

O ex-consultor nacional do Sebrae, Ângelo Vieira, afirma que negócios sustentáveis vão muito além do engajamento ambiental. Eles refletem um novo comportamento de consumo e um futuro empresarial que começa agora, destacou Ângelo, que hoje atua na Federação das Indústrias de Minas Gerais. Segundo ele, essas tendências apontam para um cenário em que empresas que não se adaptarem poderão perder competitividade.

Para Glicéria Lopes, analista do Sebrae, a mensagem é clara: o futuro é verde e lucrativo. “O Sebrae está aqui para ajudar a empreender e fazer essa travessia com segurança, estratégia e impacto”

E esse caminho tem gerado frutos. Os negócios liderados por mulheres não apenas movimentam a economia local: empregam, transformam, inspiram. Muitas vezes, são o primeiro passo para quebrar ciclos de violência doméstica e de dependência financeira. Onde não há políticas públicas, elas criam redes. Onde não há crédito, elas inventam alternativas. Onde não há mercado, elas fazem feira no terreiro da casa. E quando conseguem crescer, trazem outras mulheres consigo.

O Sebrae/RR tem ampliado o alcance de suas ações no interior por meio da Sala do Empreendedor e iniciativas itinerantes. No interior, um ônibus adaptado leva atendimento gratuito aos pequenos negócios locais. “Nosso compromisso é fortalecer os micros e pequenos empreendimentos, inclusive em áreas remotas, com atendimento direto, formação e estrutura de apoio”, reforça Doan Rabelo, diretor técnico da instituição.

Emerson Bau, superintendente do Sebrae em Roraima em Roraima disse que o Sebrae tem atuado de forma estratégica para fortalecer o empreendedorismo feminino em todo o estado.

O rosto feminino do empreendedorismo em Roraima

O empreendedorismo cresce em Roraima com o auxílio do Sebrae (Infográfico feito com auxílio da IA)

De acordo com dados da PNADc/IBGE compilados pelo Data Sebrae, o número de mulheres donas de negócio no estado de Roraima saltou de 12 mil em 2012 para mais de 23 mil em 2024 — um crescimento que revela tanto o potencial quanto os desafios dessa trajetória.

Apesar do avanço numérico, cerca de 80% das empreendedoras ainda atuam na informalidade, e mais da metade são chefes de domicílio, sustentando suas casas com os frutos do próprio negócio. A maioria dessas mulheres tem entre 30 e 49 anos — faixa etária de Isabela — e 48% delas têm apenas o ensino médio completo como maior nível de escolaridade.

Esses dados revelam o que Isabela representa: não apenas uma história de superação individual, mas um retrato fiel de um empreendedorismo feminino que nasce do enfrentamento à vulnerabilidade, se sustenta na ancestralidade e luta por visibilidade.

Brasília, COP 30 e o grito coletivo de quem quer ser ouvido

 Em 2024, Isabela foi uma das 13 artesãs que representaram Roraima na I Feira Nacional de Artesanato Indígena, no Museu dos Povos Indígenas, em Brasília. Pela primeira vez, as biojoias Wapichana ocupavam um espaço pensado para dar visibilidade às potências indígenas e ao empreendedorismo indígena feminino.

“Foi histórico e muito importante ver como os povos indígenas podem trabalhar como empreendedores e microempreendedores”.

Agora, com a proximidade da COP 30, ela segue envolvida com formações e discussões ambientais sobre mudanças climáticas, levando a perspectiva de quem preserva por existência.

“Queremos que a COP ouça a floresta de dentro. Não só cientistas, mas quem vive no meio do mato e sabe quando o rio tá doente. Não se pode ignorar os corpos que mantêm a floresta de pé.”, diz Isabela, com a mesma simplicidade de quem planta mandioca. E é com essa consciência global, mas com os pés fincados na terra, que o coletivo conseguiu uma vaga em um processo seletivo para a Feira da COP, através do projeto Norte Raiz. “A gente quer estar lá. Não pra representar só nossa aldeia. Mas pra mostrar que o Brasil indígena também sabe o que é empreendedorismo sustentável.”

Bebê wapixana usando biojóias e grafismos feitos na comunidade (Foto: Arquivo Pessoal)

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